not vital saudade,

No universo de Not Vital, símbolos e materiais viajam em alta velocidade pelas estradas metamórficas da alquimia. Ao redefinir o possível, Vital nos apresenta obras de arte singulares, que nos instigam a adquirir novas maneiras de enxergar e pensar.

Subitamente, flores de Lótus (Lotus) apresentam-se totalmente vestidas em aço inoxidável reflexivo. Apartadas do universo mortal do orgânico, carregam botões que reluzirão eternamente em isolamento. Bengalas são abruptamente apartadas de sua função por seu tamanho ampliado, dispostas diante de nós como totens utópicos. Uma Língua (Tongue) se transforma num obelisco, e a Lua (Moon) desce à Terra. Paisagens Terrestres e Marítimas (Landscapes, Seascapes)emergem lenta, porém inequivocamente de placas de mármore. Retratos (Portraits) de personalidades conhecidas, como Oscar Niemeyer, materializam-se na forma de elegantes esculturas cúbicas de prata. Galhos de árvores de bronze brancas estendem-se às alturas. Ao procurarmos em vão suas folhas, encontramos aglomerações de letras que, juntas, revelam significado. Desenhos (Drawings), por outro lado, repentinamente deixam de ser bidimensionais, adquirindo qualidade escultural através de materiais não-convencionais.

Ao analisar-se a capacidade de transformação de Vital, numa tentativa de melhor compreender sua capacidade de descontextualizar, reconfigurar e re-localizar fragmentos e símbolos culturais, sua própria mobilidade emerge como importante variável explanatória: Vital nasceu em 1948 em Sent, um pequeno vilarejo entre as montanhas, no Vale de Engadin, Suíça. Aos 18 anos, mudou-se para Paris; pouco depois, para Roma; e então para Nova York, em 1976. Desde então, tem viajado incessantemente aos quatro cantos do mundo, tendo vivido e trabalhado periodicamente em Agadèz (Níger), Lucca (Itália), Pequim (China), Patagônia (Chile) e Rio de Janeiro (Brasil).

Guiado por uma necessidade aparentemente inesgotável de descobrir o mundo, suas culturas e tradições, Vital mergulha em novos mundos com uma facilidade prodigiosa. Muitas das regiões que mais o interessam são remotas e de difícil acesso, mas isso não o impede – pelo contrário. Ele aprende e colabora com os métodos locais de manufatura prevalentes nessas regiões, realizando obras de arte e projetos tão móveis quanto ele próprio.

As obras reunidas nesta exposição são resultado da vita activa multi-local de Vital que aqui descrevi brevemente. Muitas foram produzidas em seu ateliê em Pequim – por trabalhadores habilidosos que compreendem tanto a busca pela forma perfeita de Vital quanto a importância do toque humano em sua obra. Por outro lado, em contraste com a maioria das esculturas de aço inoxidável de grandes dimensões, essas obras não são moldadas, e sim feitas à mão. No decorrer desse processo, centenas de pequenos painéis de aço bruto são martelados, soldados entre si e minuciosamente polidos. Nascidas de uma sinfonia de golpes de martelo, as esculturas de Vital trazem em si o toque humano e, ainda assim, exalam uma espécie de quietude profunda, utópica.

As Lótus (Lotus), de Vital, têm sua origem conceitual num contexto especificamente chinês. A primeira série de trabalhos do artista a inspirar-se na flor de lótus foi uma instalação – composta por cem dessas flores, diferentes entre si, dispostas no chão – intitulada Let One Hundred Flowers Bloom (2008). Se a dimensão óptica da obra é profundamente meditativa e estética, o título revela uma dimensão política: remete a uma campanha lançada por Mao Tsé-Tung na década de 1950, que incentivava as pessoas a comunicarem sua opinião sobre o regime, num espírito de franco debate e progresso. Porém, quando intelectuais e críticos começaram a se expressar, houve retaliação imediata, e os dissidentes foram severamente punidos. Apresentada com botões fechados, ceifados antes de florescer, as Lotus de Vital, dizem respeito tanto à inércia forçada quanto à vitalidade potencial.[1] Ao longo dos últimos dez anos, Vital criou diferentes versões de Lotus, cada uma delas única, apresentando uma postura ou sentimento diferente.

E embora as longas e totêmicas Bengalas (Walking Sticks, 2012) incluídas nesta exposição tenham sido produzidas na China, sua forma foi encontrada por Vital num período anterior a suas viagens – ainda criança, em Engadin, onde nasceu. Ali, nas imponentes montanhas, as crianças crescem coletando e entalhando bengalas de madeira, e observando as gerações mais velhas galgarem as encostas com seu auxílio. Um prolífico colecionador, Vital mantém uma grande quantidade dessas bengalas em sua Fundação em Ardez, Suíça. Com o tempo e as viagens, diferentes bengalas do mundo todo juntaram-se à coleção. No período em que o artista viveu na China distante, esse símbolo familiar materializou-se numa escultura surreal: ampliada em mais de três vezes sua altura original, a versão em aço inoxidável das bengalas de Vital liberta-se de qualquer propósito utilitário, erigindo-se a fantásticas alturas.

No conjunto da obra de Vital, determinadas formas são recorrentes e, no entanto, devido à sua constante metamorfose, nunca nos acostumamos a elas. A Língua (Tongue, 2010) é uma das formas que Vital vem materializando nos mais variados e surpreendentes materiais e tamanhos por décadas: surgiu pela primeira vez em 1985, pouco após o artista ter visto uma língua de vaca num açougue em Lucca, Itália. Esta língua tinha 39 cm de comprimento, estranhamente inerte e, no entanto, dotada de uma espécie de vitalidade surreal. Vital imediatamente reconheceu o potencial escultural desse órgão e vislumbrou um caminho de transformação que o permitiria transmutar o familiar em exótico, o orgânico em utópico: em vez de nos mostrar a usual ponta da língua, ele a mostra integralmente; ao invés de apresentá-la horizontalmente, tal como existe no mundo orgânico, opta por fazê-lo verticalmente. Assim, por meio de uma alquimia silenciosa, tudo pode mudar.

Outro símbolo de suma importância na obra de Vital é a lua: fascinado com ela durante toda sua vida, chegou a construir uma casa no Deserto do Saara só para observá-la. Lua (Moon, 2017) é uma das ações mais impressionantes de Vital em sua incessante busca pelo satélite terrestre: inteiramente materializada em mármore branco, esta esfera grande e perfeita de fato parece pertencer a outro mundo. Ao percorrê-la lua com os olhos e acariciar suas crateras, suas sombras e sua superfície silenciosamente animada, somos levados a nos perguntar: será que Vital trouxe a Lua à Terra, ou será que nos transportou ao universo?

O mármore há muito tem sido um material importante na obra de Vital. Em estreita colaboração com entalhadores de mármore em Pietrasanta, Itália, o artista realizou inúmeras esculturas desde meados da década de 1980, entre elas sapatos para escalar as montanhas de Engadin, onde nasceu; autorretratos; e até uma torre acessível de mármore com nada menos que 9 metros de altura. Desde 2011, Vital também incorporou o mármore chinês aos seus trabalhos. Durante uma viagem a Dali, na Província de Yunnan, deparou-se com as chamadas pedras de sonho. Em Dali, desde tempos imemoriais, o mármore é cortado em busca de imagens ocultas no interior dos misteriosos padrões variegados que o formam. Fascinado pela maneira como, nessas pedras, a formação mineral transforma-se em imagem e o sonho em realidade, Vital vem colecionando preciosos mármores Dali desde então. Ao enquadrar essas finas placas de mármore em construções geométricas de gesso brancas, o artista acentua seu elemento de pintura, bem como suas qualidades alucinatórias. Obras como Paisagem (Landscape, 2017) ou Paisagem Marítima (Seascape, 2017) nos levam a perceber que a visão mnemônica e a capacidade de sonhar a realidade são partes essenciais de nosso aparelho sensorial.

Os Retratos (Portraits)em prata, em andamento, nos quais Vital retrata pessoas próximas ou importantes para si, são outro conceito essencial em sua obra multifacetada. Esses retratos são sempre compostos de duas caixas de prata que tomam forma e volume com base na data de nascimento daqueles que representam. Nesta exposição, vemos um retrato de Nara Roesler, que não só é colaboradora e amiga de Vital desde sempre, mas uma importante fonte de inspiração para muitas mulheres que trabalham num campo artístico dominado por homens. Encontramos também Oscar Niemeyer, Ayrton Senna, Pelé e Caetano Veloso – indivíduos que fizeram importantes contribuições em seus respectivos campos de atuação, com talento, caráter e humanidade. Os retratos em prata, minimalistas, porém cheios de alma, foram todos feitos à mão por artesãos do Níger com quem Vital trabalha há mais de 15 anos; a colaboração prossegue mesmo em tempos de profunda crise política e humanitária.

Numa discussão exemplar de apenas cinco trabalhos de Vital, já visitamos diversos locais: China, Suíça, Itália e Níger. Por estar sempre viajando, Vital conhece tanto a necessidade da distância quanto a de voltar para casa. No Brasil, encontrou o mais belo nome para essa sensação de sentir falta, que sempre o acompanhará em suas empreitadas: Saudade. Desde 2011, o Rio de Janeiro tornou-se um segundo lar para Vital; um lugar sem igual. Num período em que morou em seu vale natal na Suíça, no último verão, o artista criou moldes em bronze de duas árvores nativas, colocando uma letra em cada um de seus galhos. Juntas, essas letras desenhadas à mão formam a palavra Saudade – escrita numa árvore de sua terra, ao sentir saudades do Brasil. Agora, os galhos brancos dessas árvores literárias se estendem, alcançando novamente atmosferas brasileiras: no universo de Vital, todo objeto encontra seu lugar.

O Rio de Janeiro não só se tornou um segundo lar para Vital, mas também provou ser o melhor lugar para desenhar. Em Santa Teresa, onde Vital vive, não é tão fácil encontrar materiais artísticos quanto em Nova York, Pequim ou Suíça. E é exatamente isso que Vital adora: fazer desenhos com o que tem à mão, usando não só lápis, mas também materiais não ortodoxos como fita, cotonetes, adesivos de silicone e sacos plásticos. O desenho, para Vital, é um canal para externar emoções, bem como um playground de experimentos. Armado de uma boa dose de sagacidade surrealista, Vital abandona o papel para criar desenhos que, com suas composições materiais incríveis, frequentemente transcendem o âmbito bidimensional. Suas obras em papel nos incitam a ver tanto o meio do desenho quanto os temas retratados com um novo olhar: a montanha em frente à casa de Vital no Engadin subitamente se materializa na forma de um saco plástico, no Rio de Janeiro.

Em sincronia com a vida nômade de Not Vital, sua arte migra como num sonho entre imaginários estrangeiros e alegorias nativas. Com uma alquimia ligeira, ele domestica o exótico e transforma o lugar-comum local em vocabulário visual surreal-minimalista. Consequentemente, identidade e transformação, relocação e descontextualização tornaram-se conceitos-chave na obra de Vital.

Embora pura em sua forma, a arte de Vital escapa a interpretações simples. Ao invés de oferecer conteúdo didático, ele nos incita a permanecer em movimento, em nossa percepção e pensamento. Olhar a arte de Vital, nesse sentido, implica estar alerta.