Cães sem Plumas [prólogo] reúne artistas visuais que pertencem a gerações diversas, agrupados em torno de uma invenção de linguagem de João Cabral de Melo Neto. Não por terem criado obras marcadas pela escrita angular do poeta, mas por partilharem com ele um desassossego diante daquilo que testemunham nos lugares onde transitam ou moram, e que o texto daquele fixa de modo singular. É uma mostra sobre aqueles que, no Brasil, vivem na iminência de perder o que lhes confere humanidade, embora pudesse ser sobre moradores de outros cantos que subsistem sob condições igualmente precárias. Se há nessa delimitação de foco algo de assumidamente arbitrário, há também nela a urgência de falar de algo que no país perdura quando já deveria ter terminado, e sobre o que com frequência se cala.
A poesia de João Cabral de Melo Neto é magra, não cabendo nela excessos retóricos. É construída por desbaste cuidadoso dos muitos significados possíveis que cada palavra carrega, dotando-as de secura que renova a linguagem. Por subtrair do texto criado tudo que é redundante ou sobra, foi chamada, apropriadamente, de “poesia do menos”. Tal operação de abate não retira das palavras, contudo, seu poder de ressoar, com agudeza e detalhe, ideias e coisas que fazem o mundo ser como é. Ao contrário, a magreza de sua poesia ecoa, comenta e refaz, em termos próprios, um espaço social marcado por carência e falta(1). Talvez em nenhum outro poema de João Cabral de Melo Neto essa relação entre as palavras e a vida nelas contida seja mais precisa e próxima que em “O cão sem plumas”, texto em que o autor descreve, com o pulso inventivo da linguagem que usa, o Recife ribeirinho de 1950, atravessado pelo rio Capibaribe. Na visão crítica e concisa do poeta, esse era ambiente que tinha algo “da estagnação / do hospital, da penitenciária, dos asilos, / da vida suja e abafada / (de roupa suja e abafada) / por onde se veio arrastando” o rio. Ao longo do poema, o curso do Capibaribe e o curso das vidas dos que vivem próximos às suas águas e lamas se tornam, no encadeamento de palavras, progressivamente indistintos, fazendo da descrição de uma paisagem de penúria a narração simultânea de ruínas pessoais daqueles que a habitam. O rio e os moradores de tal lugar seriam ambos “cães sem plumas”, expressão que parece designar, em forma de radical paradoxo, situações de destituição absoluta. Um “cão sem plumas”, escreve João Cabral de Melo Neto, “é quando uma árvore sem voz. / É quando de um pássaro / suas raízes no ar. / É quando a alguma coisa / roem tão fundo / até o que não tem”. (2)
Não se pretende, nesta exposição, evocar o ambiente ou a época descritos no poema. Tampouco se deseja ilustrar o texto ou traduzi-lo em imagens. Mas reclamar o emprego da ideia de um “cão sem plumas” para identificar, na produção de um conjunto de artistas visuais, grupos de pessoas cujas vidas são marcadas, no Brasil, por lacuna e ausência. Comunidades que são excluídas – por descaso ou aberta subjugação – dos ganhos que as transformações modernizadoras que o país empreendeu em décadas recentes trouxeram a muitos, seja no campo tecnológico, no da gestão macroeconômica e até mesmo no da cidadania e da proteção social. Pessoas que vivem à margem de quase tudo que outros já alcançaram no Brasil, e para as quais somente existe interdição. São “cães sem plumas”, por exemplo, a maior parte dos índios deste país, acossados por doenças e pela ganância infinda sobre as terras a que pertencem. Assim como o são os loucos e presidiários que apodrecem em um sistema curativo e prisional falido. Ou as crianças e adolescentes que moram nas ruas e gastam o pouco tempo de vida que ainda vão ter entre esmolas, delitos e o inevitável enlace com a dependência química. São também “cães sem plumas” aqueles que, diante da violência desregulada no campo ou da voracidade especulativa sobre o espaço urbano, terminam sendo retirados à força de seus lugares de vida e destituídos dos meios de sobrevivência. Ou os tantos de quem o Estado suspendeu seus direitos mais básicos, como os torturados pela polícia política no passado de exceção e os perseguidos, hoje, sob um regime democrático, por serem negros, homossexuais ou apenas por serem pobres. São ainda “cães sem plumas”, nessa lista assumidamente incompleta, os homens e mulheres que, vítimas de uma desassistência absoluta, sequer têm seus nomes identificados depois de mortos, alongando sua condição de párias, mesmo quando tudo o mais acaba. Assim como o são os estrangeiros que, atraídos pela expectativa criada de vida melhor para os que aqui moram, terminam aviltados em suas prerrogativas mais simples. É dessas pessoas, não contabilizadas no cálculo produtivista que rege e mede o avanço econômico do Brasil, que esta exposição quer dar notícia.
Cães sem Plumas [prólogo] não se filia, entretanto, a um recorrente discurso fundado em mera denúncia moralizante, o qual expõe as graves fraturas sociais do país ao mesmo tempo em que as apazigua, remetendo suas causas sempre a outros momentos e outros lugares, nunca coincidentes com o agora e com o aqui. O que se busca é inscrever, em narrativa concomitante àquelas outras que relatam o que é considerado avanço no Brasil, danos de várias ordens infligidos a parcelas específicas da população do país, quase sempre ausentes de sua paisagem simbólica. Inscrição tecida por meio de criações aproximadas no espaço expositivo, que de modo menos ou mais direto invocam a subtração de tantas vidas. É certo que há vários outros danos que não são computados nesta mostra, assim como diversos outros artistas os convertem em mais imagens e formas, concedendo visibilidade social aos agravados e aliviando-os de uma mudez que lhes é imposta. Antes e longe de exaurir o tema, o que se quer é justamente levantar assuntos que são ainda pouco confrontados em espaços de apresentação artística no Brasil, como se não valessem o bastante para isso ou, no limite, sequer existissem. E se a feitura da exposição nesse campo é marcada por óbvia contradição – o dinamismo crescente do chamado meio da arte também resulta, afinal, do modelo de crescimento vigente no país –, não fazê-la seria abrir mão do poder que os pequenos ruídos e gestos possuem de criar fissuras nas convenções que definem o que é da esfera do comum. Seria assumir que imaginar novos nexos entre as pessoas, coisas e fatos que demarcam o que é um lugar não produz o efeito transformador dos afetos. Seria esquecer daquilo que pode a arte.
Cães sem Plumas [prólogo] baliza o início de uma investigação mais ampla e duradoura, embora seus pressupostos sejam já aqui apresentados. Primeiro, reconhecer que persiste e se reproduz, no Brasil, um tipo de vida na qual gradualmente se desmancha o que de humano pode haver nela. Depois, saber ser impossível dissociar essa situação de privação extrema da indiferença que ela desperta naqueles que preservam a sua humanidade. O grau de despossessão que marca esses “cães sem plumas” é índice inequívoco de que, a despeito de ter mudado muito e beneficiado tanto os que antes pouco tinham, o país permanece desigual e excludente. Esta é uma exposição sobre vidas roídas. Sobre aqueles que não são contados.
Moacir dos Anjos
(1) Secchin, Antonio Carlos. João Cabral: A poesia do menos. São Paulo: Duas Cidades; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1985.
(2) Cabral de Melo Neto, João. O cão sem plumas. Barcelona: O livro inconsútil, 1950; 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984 (com fotografias de Maureen Bisilliat).