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Outros Ensaios Para o Tempo
Deri Andrade

 

Exercitar a percepção do tempo revelou-se uma surpresa quando imposto pelo atual contextode adversidades. Se, por um lado, precisamos descobrir como reinventá-lo, por outro faz-se necessário experimentar outras formas de pretendê-lo. Assim, a ideia de ensaiar o tempo surge como uma oportunidade para criarmos laços entre as três experiências artísticas reunidas nesta exposição. Outros ensaios para o tempo apresenta trabalhos recentes de Gustavo Nazareno, Kika Carvalho e Mulambö, nomes em exponencial ascensão no campo institucional.

 

Separados geograficamente por estados brasileiros limítrofes – Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro – mas unidos pelos poucos anos de diferença que revelam suas jovens trajetórias, os artistas compartilham de um mesmo cenário que tem injetado certo vanguardismo à figuração contemporânea. Nesse sentido, a pintura como prática se propõe um conjunto único, revelando no gesto e na cor um exercício de investigação particular. Em imagens que partem de referências das afro-religiosidades, do lugar social do corpo negro ou da própria história da arte, o trio de artistas ensaia um jogo entre semântica e estética.

 

Nascido no interior mineiro, Gustavo Nazareno realizou, ao longo da adolescência, um aprofundado estudo da anatomia humana. Nos desenhos em carvão da série Gira, o artista expõe sua técnica no controle com que delineia o carvão no papel. Já nas pinturas, Nazareno corporifica estandartes à imagem dos orixás do panteão afro-religioso. Na bidimensionalidade do suporte pictórico, dramaticidade e sofisticação são marcadas pela habilidade do artista em explorar as nuances da cor a partir dos temas que elege. Observamos, nessas representações, a transposição da matéria em movimentos que coreografam ritos e giras das religiões de matriz africana. As figuras se valem também de referências à cultura queer, como os bailes de voguing, e à moda para esboçarem uma dança no suporte em branco.

 

Com o mesmo interesse em aprofundar a pesquisa em retratos, Kika Carvalho participa da mostra com três obras que enunciam uma assinatura. Partindo do desejo de explorar as diversas possibilidades que emanam do azul, a artista centra seu trabalho em captar cenas de um cotidiano compartilhado. Carvalho toma emprestadas imagens de conhecidos, entre familiares e amigos, para produzir um contexto de subjetividades. Evoluindo a percepção de como a própria matéria pode se comportar no espaço pictórico, sua prática investiga por pigmentos que percorrem desde o tom de pele dos personagens até os cenários autobiográficos das pinturas, uma vez que o azul evoca uma memória circunvizinha extraída da paisagem marítima de Vitória, cidade onde vive e trabalha.

 

Empenhada em pesquisar as origens dessa tonalidade de presença marcante, a artista indica que descobriu seus primórdios no Egito Antigo, milhares de anos antes da chegada do pigmento na Europa. Mais valioso até que o próprio ouro à época, nas pinturas da artista o azul é utilizado delicadamente para cobrir corpos negros retintos.

 

Enquanto Carvalho idealiza uma obra monocromática, com nuances pontuais de outros matizes que postulam uma composição harmoniosa ao quadro, Mulambö joga com vermelho, amarelo e preto deliberadamente. Seu trabalho busca uma revisão crítica, tanto do ponto de vista historiográfico quanto da materialidade da obra em si. Dessa forma, o interesse por símbolos de resistência, principalmente no contexto suburbano no qual está inserido, em especial o Rio de Janeiro, retira de uma icônica fotografia de Carlos Vergara a imagem altiva do homem negro aplicada na pintura em acrílico. Acompanhada da bandeira brasileira reconfigurada com emblemas que denotam certa ancestralidade, essa figura parece responder aos anseios do artista em lhe instituir uma voz através desses mecanismos de representação. E é nesse lugar que o trabalho de Mulambö desdobra-se engenhosamente.

 

Realizadas em generosas dimensões, as obras apresentadas nesta exposição formulam uma coletividade, e também apontam características próprias, convidando-nos a descobri-las individualmente. Cada história conta um outro tempo, ensaia uma forma de percepção do futuro e arrisca desenhar afirmações de novos discursos simbólicos. Dessa maneira, Nazareno, Carvalho e Mulambö articulam um outro modo de circunscrição da presença negra na arte.

 

Ao conceberem os trabalhos apresentados em Outros ensaios para o tempo, os artistas projetam um futuro possível, cujo momento é passível de ser legado. Se as linhas que ligam suas histórias são refletidas no chão desse espaço como um intervalo comum entre suas trajetórias, talvez depreender os enunciados signifique subverter a distância que os separa, mas que os conectam a um mesmo tempo.