Em sua primeira individual na Galeria Nara Roesler, Berna Reale aprofunda sua investigação sobre a violência. Suas performances, que renderam vídeos, fotografias e instalações, tornaram-na conhecida nacional e internacionalmente, do que é exemplo o convite para representar o Brasil na Bienal de Veneza de 2015. Tudo isso aconteceu em poucos anos. É que Berna chegou com uma obra madura, toda ela focada nesse que é um dos aspectos mais sensíveis do nosso país. Fixada em Belém, lá, como em qualquer outra grande cidade brasileira, os jornais trazem cadernos policiais cada vez mais minuciosos; os noticiários televisivos transformaram-se em relatórios de barbaridades; fome, assassinatos e as insurreições fazem parte do cotidiano; as pessoas compartilham imagens de violência pelas redes sociais. Perita Criminal, a artista testemunha intestinamente a naturalização crescente, exponencial, da violência na vida das pessoas.
Protagonizadas por ela mesma, suas performances tocam abertamente nesses temas e problemas afins mas de um modo capaz de renovar nossa indignação, medo e tristeza. Em GULA, sua primeira exposição na Galeria Nara Roesler, Berna Reale, mantendo o mesmo eixo de questionamentos, mudou de direção, tornou-se menos explícita, menos literal, exigindo do espectador a decifração de signos mais sutis.
Composta por seis séries fotográficas e uma instalação, a artista abre a exposição com um conjunto de imagens (Sobremesa) nas quais policiais devidamente paramentados, atacam com voracidade pedaços de bolos enfeitados, um desses bolos de festa, decorados por grossas camadas de cobertura. O uniforme de policiais são, como é de lei, como os assistimos ostensivamente desfilando nas nossas ruas, camuflados. Apenas mais um símbolo da guerra civil na qual nos metemos mas que hesitamos em assumir. Os signos se chocam. O eventual riso do inusitado da cena, rapidamente cede espaço a uma pergunta: a que se refere a gana com que comem, esse devoramento ávido?
Sim, tem algo a ver com a marcha incessante do entredevoramento entre camadas sociais, o canibalismo mútuo, respingado de sangue, de que faz parte a arrogância dos responsáveis pela ordem que, mesmo do alto de suas baixas patentes, não hesitam em atirar no meio de comunidades, acertando inocentes, a voluptuosa repressão da legião de desvalidos, as revistas humilhantes aos membros da ralé, essa classe tratada como se não fosse gente, a qual, a maior parte deles, policiais, pertence.
O perigo de armar o poder decorre do prazer que isso gera. Uma ânsia que rapidamente se converte em sadismo mais ou menos explícito, como os que aplicam alguns daqueles que se colocam como porta vozes das divindades, os funcionários de igrejas responsáveis pelo comprometimento da infância (Comida batizada), como as meninas imberbes que são entregues a homens adultos (Comida caseira), como os que miram as mulheres como pedaços de carne (Comida de lobo), como os que atacam as travestis movidos pelo ódio, crentes de que esses não merecem existir, porque sequer são gente (Comida de Leão).
Merece destaque as duas imagens que compõem a série Comida de rua: três garotos (homens?), um branco, um negro, um mulato, vestidos apenas com calções, todos eles com o rosto voltado para a parede, mãos espalmadas para o alto, de costas, impossibilitados de encarar as faces de quem os constrangem. Um detalhe não deve escapar: cada um dos calções está decorado com uma estampa: pipoca, o branco, cachorro quente, o negro, batata frita, o mulato. Pipoca, cachorro quente e batata frita, três das comidas vulgares, rápidas e baratas com que se alimentam os desfavorecidos. Três exemplos da assim chamada junk food, própria para o saciamento rápido, como também são os rapazes que cometem o crime de serem pobres, aos olhos dos profissionais da ordem que, em suas batidas rápidas, frequentemente os arrocham pelo simples desejo de saborear seu doce poder.
Por fim, na última sala, a instalação GULA, um agrupamento de cinco caixões pequenos, destinados a crianças, semelhantes a um velório desbaratado. Trágico não fosse o fato de todos eles serem laqueados e ornamentados com confeitos, a matéria doce com que a infância se delicia.
Texto e curadoria: Agnaldo Farias