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Nara Roesler São Paulo tem o prazer de anunciar Pessoas que eram coisas que eram pessoas, primeira individual do artista carioca Elian Almeida na cidade. Acompanhada por ensaios críticos de Keyna Eleison e Luiz Antônio Simas, a mostra apresenta um conjunto de pinturas inéditas, resultado do aprofundamento da pesquisa de Almeida sobre a cultura e memória afro-brasileira. Nos novos trabalhos, o artista se debruça sobre as manifestações culturais do Recôncavo Baiano. A exposição abre ao público no dia 13 de maio e segue em exibição até 29 de julho de 2023.


O deslocamento, no trabalho de Almeida, se dá em via dupla: temporal e espacial. “Nasci duas vezes no mesmo lugar”, o artista costuma afirmar. O local a que se refere é a região do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, um dos principais pontos de chegada e comercialização de negros a serem escravizados no Brasil durante o século XIX. Para Almeida, o nascimento é duplo, pois a chegada de seus ancestrais, séculos antes, neste mesmo porto, na condição de “coisas” e não “pessoas”, é um fato histórico que determinou seu nascimento, neste mesmo lugar, no ano de 1994. Esta constatação revela o quanto a prática de Almeida busca entrelaçar diferentes tempos e narrativas a sua própria biografia. No entanto, a sensibilidade de sua abordagem faz com que suas pinturas extrapolem o campo biográfico, abrangendo a experiência de outros corpos racializados no Brasil.


O artista, que já realizou pinturas baseadas no fluxo de africanos abduzidos de sua terra natal e traficados para serem escravizados no Novo Mundo, agora volta-se para diásporas no território brasileiro, em especial, na diáspora da população baiana para o Rio de Janeiro. Almeida vê nessa migração as origens de um encontro cultural que fomentaria a emergência de expressões de resistência da cultura afro-diaspórica, em especial no território conhecido como Pequena África, no Rio de Janeiro. 


O fio condutor da pesquisa que o artista desdobra nos trabalhos que fazem parte da exposição é a religiosidade manifestada em práticas sincréticas. O Recôncavo baiano, nome dado à região geográfica ao redor da Baía de Todos os Santos, na Bahia, e cujo mapa figura em uma das pinturas da exposição, é um território rico em tradições culturais africanas, tendo em vista o grande afluente de indivíduos daquele continente que ali chegaram. Nesse contexto, floresceram irmandades secretas de negros escravizados, como a Irmandade da Boa Morte e a Irmandade dos Homens Pretos. Ainda que, em um primeiro momento essas comunidades fossem abrigadas no interior de igrejas católicas com, as irmandades se constituíram como espaço de encontro e convívio de pessoas que compartilhavam vivências de exílio e submissão forçadas. 


As pinturas de Almeida visam destacar como a assimilação de elementos do catolicismo foi uma das estratégias encontradas pela população escravizada para a sobrevivência de suas manifestações culturais subalternizadas. Em suas telas, o artista articula imagens e gestos provenientes dos dois universos religiosos e em grande partes das composições, a branquitude é representada a partir de objetos como oratórios, esculturas, mobiliários e, até mesmo, através de detalhes da arquitetura, como a típica azulejaria portuguesa. Já os elementos da cultura afro-brasileira, em especial aqueles que constituem a Umbanda e o Candomblé, aparecem na vivacidade dos gestos e nos elementos rituais, como guias, danças e ervas, criando contrapontos entre as esferas material e espiritual.


O artista também apresenta uma série de telas de cenas rituais, como a lavagem da escadaria do Bonfim, ou cenas de danças e ritmos consagrados aos orixás. Um dos destaques da exposição é o quadro em que o artista faz menção à lei do ventre livre, tema que já havia investigado anteriormente em outros trabalhos. Promulgada em 1871, a lei atribuía, a partir daquele momento, liberdade aos filhos de mulheres escravizadas. Na pintura, uma mulher negra, prestes a dar à luz, é representada deitada sobre o chão de um sobrado colonial, acompanhada por uma rezadeira. Para Almeida, essa imagem representa a potência de renovação presente no ato de nascer, servindo como uma metáfora para as possibilidades de transformação que o futuro apresenta. 


No entanto, para Almeida é o apagamento que se constitui como a maior forma de violência existente, contra a qual busca apontar em seu trabalho. O artista tem como alvo não só a negação do direito à memória em decorrência do empreendimento colonial, mas também as lacunas de lembranças pessoais de pessoas racializadas, devido à violência dos traumas a que são submetidos na sociedade. 


Em Pessoas que eram coisas que eram pessoas, Almeida reúne símbolos e imagens provenientes de uma ampla pesquisa iconográfica, para criar composições sincréticas que atravessam tempos na proposição de um novo imaginário mítico, não por remeterem a um tempo heróico, mas pela tentativa de retraçar possíveis origens para a cultura afro-brasileira, demonstrando como a disputa de narrativas também se dá através da proposição de novas formas de representação.